Raízes judaicas e narrativa
Daisy Perelmutter
O depoimento de MIRNA PINSKY é paradigmático da carpintaria exigida à memória, quando se busca talhar laços mais úmidos com o vivido. Laços imprecisos e que se fazem por proximidade, não obstante eles aceitam a irredutibilidade do passado, seu mistério e seu enigma inexoráveis. Diferentemente da ideia proustiana da memória como fruto de um arrebatamento súbito, que reencontra o tempo perdido do passado para arrancá-lo fora do tempo, dada a sua insuficiência; a memória benjaminiana, que vem servindo de lastro para esta investigação, precisa ser lavrada pelo sujeito que rememora. Ela é um gesto ético, um trabalho do pensamento, um esforço de insurreição contra o sentido petrificado, uma lufada de liberdade onde a vida parece estar aprisionada, parodiando Pelbart ao se referir à função desterritorializante da literatura. Esta história, que dialoga e se imiscui na memória em busca da construção de um presente mais generoso e menos austero, “flerta” de maneira explícita com o campo da arte. (…)
O depoimento de Mirna é combativo e discreto. Dele desprende-se uma ousadia sutil. Há um esforço na escolha das palavras (pronunciadas com cuidado, e não aleatoriamente) e nas imagens narradas de modo a fazer do passado um território pictórico, de descobertas e novas fissuras. Embora ela não pareça assoberbada pelo passado, nem por isso ele lhe soa indiferente. Há um diálogo cauteloso de religação do passado com o presente. Ainda que muitos dos conteúdos relatados sobre a vivência judaica tenham várias afinidades com os narrados por Sylvio – grandes vácuos sobre a vida pregressa dos pais, insipiência de rituais observados, apagamento de traços e práticas judaicas cotidianas, visão complacente dos imigrantes em relação ao Brasil e desejo de abraçá-lo visceralmente – há uma diferença que identifico na disposição, não apenas manifesta no depoimento, mas na própria vida, de acordo com os conteúdos trazidos pelo relato, de “burilar” este passado, perseguindo seus rastros, seus restos, suas permanências. Não se escuta (no timbre, nas pausas, no ritmo, na respiração) e tampouco se enxerga (através das expressões, gestos, movimentação no espaço) uma atitude sentimental no interesse de retroceder ao passado, como se este fosse um território idílico, um paraíso perdido. Todavia, há uma inquietação no que ele, ao ser invocado pelo presente, representa de exterior, estranho, não coincidente, perturbador.
O que fica de mais candente nas estórias narradas, e que a situação do depoimento em si reitera, é o prazer incontinente de ser enredada por estórias. Quando Mirna fala sobre a literatura, sua voz parece ganhar mais espessura e mais fulgor. A felicidade de ser a emissária ou receptora por onde passam vários mundos, deixando-se embeber desta profusão, não apenas em sua biografia particular, mas em todas as outras que a foram atravessando, parece configurar-se como o eixo que alinhava muitas de suas experiências. Na maneira como Mirna vai urdindo seu depoimento, recuperando lentamente lembranças, propondo bifurcações sem destino certo, rasurando a solidez inquebrantável de certas memórias, incorporando a dúvida como constituinte das certezas, propondo não apenas uma, mas múltiplas aproximações não excludentes ao vivido, observa-se o caráter experimental que ela parece atribuir à narração. Para além de sua função representacional, há uma aposta por parte de Mirna no aspecto combatente e intervencionista da narração, que tem todo o direito de não aderir viscosamente à crueza do fato vivido, declinando para aspectos que parecem alheios ou pouco afins com o que literalmente ocorreu na experiência passada. Para Mirna, o narrar é uma espécie de bálsamo contra a “miséria do real”, uma forma de dar-lhe mais pregnância e mais murmurinho. É como se através da narração Mirna fosse alargando e simultaneamente habitando o mundo, comprometendo-se com sua multiplicidade e “lambuzando-se” da sua complexidade.
Extrai-se de suas memórias e da qualidade de sua entrega na ocasião do depoimento, isento de grandiloqüência, embora visível e sonoramente investido, que narrar é coisa séria, é um investimento estético que aspira à invenção da realidade, e não à sua calcificação. Esta talvez seja a razão da gravidade e do frescor que emanam de seu relato. Há uma disposição genuína por parte de Mirna de revisitar as veredas do passado, abrindo-se, sem cautela, para os novos sentidos que a escovação sobre ele e o diálogo comigo provavelmente desencadeariam. (…)
Ao nos reportarmos novamente à narrativa de Mirna, o universo das histórias (leitura e escrita) é destacado como o espaço que lhe assegura o mais profundo sentimento de pertinência, o mais familiar, o mais quente.
Proferidas através da escrita ou do discurso oral, o diálogo é inerente às estórias. E o diálogo, por sua vez, só se efetiva com a idéia de partilha. Partilhar significa participar com, ser capaz de escutar e afirmar a singularidade do outro, de modo que o outro lhe assegure os mesmos direitos que a ele são conferidos. Esta coexistência saudável, que fica no interstício entre o solipsismo e a simbiose, renova as formas de saber sobre o mundo, sobre o outro e sobre si mesmo. Atribuir às estórias a condição ambivalente de abrigo e farol, assim como foi o Antigo Testamento durante toda a história judaica, é uma forma de aceitar e acolher a exterioridade, não se contentando com o que é familiar, com o que é acabado, estagnado. As estórias possibilitam a conquista de novos territórios prescindindo do deslocamento físico, o questionamento de princípios e certezas tidos como firmes e infranqueáveis e representam um “sopro profundo de humanidade” ao colocar o leitor/ouvinte sem proteção e sem escudo diante do mundo dos outros, das outras vidas, das outras formas de sensibilidade. E é justamente este embate que possibilita a experiência da comunhão, da aceitação. Neste sentido, as estórias representam poderosas e indomáveis usinas de subjetivação. (…)
Ao optar pela literatura como atividade profissional e ao cavar espaços no interior de seu cotidiano para que as estórias familiares permanecessem, instigando de alguma forma seu imaginário, fica claro o lugar solene que o enredo como transmissão criativa de uma ação coletiva, como o define Sant’Anna, adquire na existência subjetiva e objetiva de Mirna. Neste sentido, apesar de todas as supostas lacunas de sua formação judaica, silêncios e negações de uma aderência mais viscosa, Mirna talvez tenha a maior de todas as marcas judaicas, que é a necessidade do diálogo com o mundo, e que a literatura, mais do qualquer outro recurso, propicia e potencializa.
[Trechos de INTÉRPRETES DO DESASSOSSEGO – Memórias e marcas sensíveis de artistas brasileiros de ascendência judaica – Tese de doutorado em História, PUC-SP, 2004 (pg 77 e ss) ]