Arte e cultura de massa

Sobre A Grande Viagem
Pâmela Rodrigues Scutari
(Trechos de trabalho que se propôs a abordar os aspectos literários e de cultura de massa de A Grande Viagem)

A grande viagem retrata as dificuldades encontradas por Marcelo em face do divórcio dos pais, o novo emprego da mãe em condições precárias, a educação e a saúde de seus irmãos comprometidas, envolvimento com drogas, e o acompanhamento psicológico a ele oferecido por Nara, que tenta confrontar suas atitudes e incentivá-lo na busca por soluções. A obra acompanha, ainda, os desafios de Mercedes quanto a sua família, rendimento escolar, drogas e autoestima, relatados a sua prima mais velha, Daniela, via e-mail e, então, compartilhados com sua avó. Dessa forma, A grande viagem, por meio de três vozes narrativas que se intercalam ao longo de capítulos organizados de forma não linear (sessões de terapia, experiências familiares, e-mails), explora essas questões a fim de que sejam elucidadas e não tomadas como destino final de cada personagem. (…)

Por meio de diálogos rápidos, linguagem cotidiana e descrições ou reflexões de narrador em primeira ou terceira pessoas, A grande viagem aproxima o jovem leitor da realidade das personagens. No primeiro capítulo, por exemplo, observamos:?

— Dona Beatriz trouxe a ‘mercadoria’ — e a voz de Nara tem aquele tom irônico que ele sempre recebe como ameaça. — E nós examinamos aqui.
— E é da boa, não é? — ele ainda tenta ser engraçado.
— Não, NÃO É DAS BOAS! Porcaria legítima. Mas isso tanto faz, você sabe disso. O que importa é, caramba, Marcelo, POR QUÊ?

No capítulo seguinte, “Sair voando”, em que Marcelo tem acesso de raiva devido à presença do pai e às condições a que o pai submeteu sua família, o jovem, desorientado – provavelmente, sob efeito de drogas –, mas lúcido quanto ao que o cerca, reflete sobre a vida difícil da mãe:

Gosto demais da mãe. A mãe me dá pena. Tipo da pessoa que a vida desperdiçou. Uma cabeça boa, super bom-caráter e uma energia incrível pra ajudar os outros. A vida engoliu a mãe, enterrou-a numa fábrica por oito horas todos os dias – já pensou, oito horas, todo santo dia, tem mais de quatro anos? – costurando varetas de guarda-chuvas! Peças grandes, pequenas, tecidos brancos, pretos, marrons, estampados, tristes, alegres, a vida dela pulando das mãos para as varetas, das varetas para as vitrines, das vitrines, para outras mãos molhadas de chuva. Quando penso no desperdício, fico doido.

À linguagem, acrescentam-se, ainda, os momentos em que Mercedes troca e-mails com sua prima mais velha, Daniela, de modo a compartilhar suas insatisfações, utilizando expressões cotidianas e típicas da internet:

Para: dada@fafa.com.br
De: Mercedes
Assunto: Ser imensa

Dani,
Queria ter paz, entende? Paz! Assim, acordar zen numa manhã de inverno, achando que o dia está com a temperatura certa, que a neblina deixa as coisas com a tonalidade certa, que o buzinaço do trânsito é um ruído melodioso e que esse TÉÉÉÉÉÉDIO perene e horroroso sumiu de vez.
[…] Pena, pena, pena que no dia seguinte começa tudo de novo. Tou pensando em jogar uma pedra no espelho do meu quarto, o que acha da idéia? Pelo menos não vai ter uma gordona do outro lado me olhando com cara de profundo tédio toda manhã.

Dessa maneira, o leitor segue diferentes ritmos e situações da narrativa da obra, que se entrecruzam, desafiando-se a compreender essas relações e a organização da narrativa como um todo, e tornando-se, gradualmente, imerso em realidades que conhece ou não: se sim, poderá deparar-se com outras possibilidades sugeridas ou proporcionadas pelo acesso a essa e outras leituras; se não, estará, ao menos, consciente de que os desafios encontrados por Marcelo e Mercedes possuem raízes profundas e são encarados e compartilhados mediante a viagem, isto é, fuga: “A viagem de Mercedes não está sendo boa como a minha. Ela está muito triste, melancólica. De vez em quando sobe num muro e recita umas quadrinhas infantis. De vez em quando abraça e beija algum desconhecido. Mas age em câmera lenta, como se tivesse muito sono ou estivesse vivendo num sonho. E não estamos?” .

No que concerne ao enredo e desenvolvimento da obra e personagens, revela-se a influência da terapeuta de Marcelo e da avó de Mercedes sobre os dois adolescentes. Nara procura conhecer, ao longo das sessões, os problemas de Marcelo, e esforça-se para lhe transmitir o que acredita ser necessário para que o jovem consiga viver em sociedade como participante: “E Nara se vê explicando ao garoto o bê-á-bá da cidadania, aquela coisarada que transforma um bando num grupo organizado” .
A terapeuta descobre, ainda, as aspirações e aflições mais secretas dele:

— […] E os trapezistas? O trapézio pra mim é uma mágica. O trapezista é um homem-mágico, que desafia os limites do corpo. O trapezista é um homem que sabe voar. Imagino a sensação de… de…
— De plenitude?
— Isso: plenitude… a sensação de plenitude de alguém lá no alto, sabendo que pode chegar até o outro lado da lona sem contar com as passadas dos pés. É a glória! Ah, se eu pudesse escolher, eu queria ser um trapezista.
— Mas você pode, por que não?
— Porque… porque eu não tenho grana, porque eu preciso encontrar um jeito de ajudar minha irmãzinha doente e meu irmão que não consegue aprender nada, e tem a mãe que está se matando pra ganhar mixaria, e… […]

— Um sonho só meu? Meu sonho maior?
— Um sonho, vários sonhos, o que você quiser contar.
— Quero viajar e conhecer tudo. […]

— E o que isso significa para você?
— Que eu tenho um rumo, eu tenho um sentido. Na maior parte do tempo — e isso me dá agonia — sinto que me programaram, entende? Esperam tanta coisa de mim… Acho que esperam… Se realizo, ficam tranqüilos. Se não realizo, vem pauleira de tudo quanto é lado: pai, escola, até a mãe também. Mas o que esperam de mim não me dá o menor tesão. […] Só sei que fazia tudo com muita intensidade e agora está difícil de me entregar pra alguma coisa qualquer que me dê o mesmo prazer. Parece que estou sendo empurrado para dentro de uma máquina que vai me engolir, me deglutir e depois me cuspir feito um inseto. E um dia eu acordo barata.

Nesse sentido, Nara desempenha, na jornada de Marcelo, o papel de conhecê-lo para que possa lhe indicar um caminho por onde seguir – superando conflitos e distante das drogas.

O mesmo se dá com a avó de Mercedes: inserida no meio digital, após a troca de alguns e-mails com sua prima, a adolescente conclui que deva dedicar algum tempo à avó Maristela, evitando aborrecimentos na casa de seus pais; aquela, por sua vez, insiste em que explorem sua Bat-biblioteca e façam planos culturais juntas.

A princípio, a ideia não agrada a Mercedes:

Não estava nos planos de Mercedes fazer um programa de avó. A verdade é que a aflição que sentia não iria caber numa sala fechada, muito menos na tranqüilidade da leitura de um livro. Fazia tempo que ler deixara de ser uma coisa divertida. […] Nessa época, a biblioteca de vó Maristela era um jardim encantado. Cada livro, uma história para ela viver. […] Mas um dia deu um estalo – ela não se lembra como – e começou a ver que imenso tédio era de fato sua vida. Olhou para os pais e viu duas pessoas que falavam uma língua estranha. E foi aí que tudo começou a desandar. […]

Deu de engordar. Sem mais aquela, começou a perder roupas. Não cabia em mais nada. […] Esse foi o primeiro baque. […] O rosto ficara rechonchudo com bochechas que ela não tinha desde pequena. […] Nada ficava bom. Com ou sem batom. Com ou sem lápis realçando os olhos verdes que um dia mereceram um poema – super kitsch, mas simpático – de um fã colega de classe.

Antes de contatar a avó, Mercedes demonstra apreciar, contudo, a música – há referências de Skank e Barão Vermelho a Elis Regina, Tom Jobim e Chico Buarque – e, especificamente, o canto:

Mercedes ama CANTAR. E cantando é o melhor jeito que conhece de aquietar a aflição. Então se põe a baixar as músicas para o seu computador e solta a voz. A linda voz com registro de contralto e afinação espontânea, que desde criança lhe garantiu um lugar de destaque no coral da escola. […] Mercedes não entende, não entende mesmo, por que a mãe encrenca tanto quando ela coloca a Mônica Salmaso no som e se põe a fazer a segunda voz, bem mais baixa do que a da cantora e depois atravessa e cantarola em falsete. Não pode ser só por causa das sofríveis notas em geografia, história, ciências e matemática […].

Por isso, conciliados os gostos de ambas e após uma noite no Sesc e em um bar com karaokê, a aproximação entre as personagens surte efeito positivo sobre Mercedes: a garota pode compartilhar seu “desconforto e total desamparo” de modo a ser acolhida pela avó.

Por consequência, os dois jovens percebem a urgência de novos rumos, como expressa Marcelo em dois diferentes momentos: “Estou virando pedra, cimento, estou secando, estou morrendo, a cada dia que passa. Me falta espaço, me falta ar. Preciso urgentemente, encontrar a minha trilha. E não é andando em ônibus fedidos e vendendo revista de mulher pelada pra neuróticos espinhudos, que ela vai aparecer”, e “Ah! se eu pudesse estancar esse momento! O que eu daria para poder voar por todo o sempre!”.

A alternativa encontrada por Marcelo, então sugerida a Mercedes, é a escrita ou “relato de viagem”:
Começa a ser construído, pelo milagre da palavra, na busca comum por um espaço sem dúvidas, medos, inseguranças e dor, o vínculo até então anestesiado.
— E esse manuscrito, Marcelo? — pergunta Mercedes, abrindo o pacote de folhas brancas com vinte e tantas páginas manuscritas.
— É o meu relato. É a minha viagem.
— Hummm. “Sair voando”, é… a gente queria mesmo isso: sair voando…
— Estive pensando umas coisas, Mercê. Por que você não bota também no papel o teu vôo? Senta e escreve. A minha história ficou sem final. Deixei pra escrever isso junto com você. Depois. O que acha?
— É… não tinha pensado em escrever… mas talvez… Nesses últimos tempos venho tentando encarar o que aconteceu, como uma preparação. Tenho pensado muito. Desse jeito não dá mais. […] — Fica com a pasta. Se achar legal minha sugestão, faça também seu exorcismo por escrito. Não sei aonde vou chegar, mas está na hora de seguir em frente, passar para outra. Vou batalhar uma viagem diferente. Uma Grande Viagem. Vou botar todas minhas fichas nela. Vou dar um tempo pro faz-de-conta. Xôooo.

Logo, por meio de três vozes narrativas, a representação de diferentes situações que se podem fazer presentes na vida de um adolescente – questões domésticas, acompanhamento psicológico, relacionamentos via redes sociais, falta de incentivo à leitura e envolvimento com drogas –, e o entrelaçamento dos elementos anteriores de forma não linear, buscam-se, na obra, caminhos para soluções aos problemas familiares e pessoais de Marcelo e Mercedes, e possibilidades para trilharem sua Grande Viagem como indivíduos.

Considerações finais: A viagem do livro até o leitor como produto ou obra literária

(…) Devem-se enfocar, por fim, aspectos concernentes à indústria cultural, presentes neste livro (…) de modo a evidenciar seu caráter artístico ou mercadológico, ou ambos: (…) a lei da oferta e da procura no circuito comercial, que, em se tratando de um livro para um público leitor jovem, se volta às bibliotecas escolares (…); a diluição e facilitação dos conteúdos ― que não ocorrem neste livro em que as vozes narrativas e a realidade das personagens são alternadas; ¬a universalização dos indivíduos, que sim ocorre pela fácil identificação do leitor para com as personagens, como Marcelo e Mercedes e seus problemas familiares e de autoestima, e envolvimento com drogas; o encorajamento de uma visão passiva e acrítica do mundo ― desconforme à visão dos personagens da obra, especialmente de Marcelo no que concerne a sua família, o trabalho penoso da mãe e a dificuldade do irmão nos estudos; o conformismo no campo dos costumes, dos valores culturais, dos princípios sociais e religiosos, das tendências políticas ― não incentivado por Nara e a avó Maristela quanto aos dois adolescentes, levando-os a optarem por mudanças; e o mascaramento da diversidade cultural e social, não aderido pela obra na representação da vida de Marcelo e de seus contextos familiar e escolar.

Dessa forma, percebe-se relação entre A grande viagem, cultura de massa e mercado (…), como universalização das personagens, representação de contato pela internet e referências a produtos culturais, além de uma certa preocupação na formação do jovem leitor, proporcionando leitura desafiadora, evitando a linearidade, e optando por uma linguagem diversificada com pluralidade de vozes e referências literárias. Essa relação dual, entretanto, não parece comprometer a natureza literária da obra nem a função e o compromisso da escritora em “ser os caminhos de formação e salvação” mediante a “individuação desses caminhos” (no dizer de Umberto Eco), a serem trilhados pelo leitor.

(Trabalho apresentado à disciplina de Pós-Graduação em Letras da FCL de Assis “Literatura e Mercado”, ministrada pelo Prof. Dr. João Luís Cardoso Tápias Ceccantini, em março de 2018.)