As Malhas do Texto.
Sobre Quebra-cabeça
de Zizi Trevisan
(…) Insistamos um pouco mais nesta possível exploração de literariedade em todos os graus de ensino, sempre atendendo a esta prática educacional emancipatória, centrada no leitor. Consideremos a obra infantil Quebra-cabeça (São Paulo, Melhoramentos, 1981) de Mirna Pinsky.
Esta obra, muito bem construída, favorece os dois momentos complementares de aprendizagem da leitura: o do comportamento automatizado e o do comportamento criativo.
Já de início, podemos observar que a própria natureza corpórea deste texto propicia o treinamento técnico – formal do ato de ler. Em outros termos, o comportamento automatizado é facilitado, por exemplo, pelo tamanho das letras, espaçamento, comprimento das sentenças…
Estes elementos, acrescentados à exploração de um vocabulário acessível ao leitor infantil, à predominância da coordenação de frases, à correlação texto-figura, acabam por auxiliar no entendimento da intriga construída.
Esta gira em torno de uma romãzeira que, durante quatro anos seguidos, deu apenas uma romã a cada ano – e das peripécias de uma menina e de seu avô para conseguirem a fruta, na disputa com um pássaro. E, no final da obra, inscreve-se o quebra-cabeça para o leitor: quem teria ficado com a romã na última disputa? O avô? A menina? O pássaro? O leitor, ao constatar que o desfecho desta história (resolução do quebra-cabeça) só aparece (de forma implícita) no início da obra, já pode perceber o nível de arte da construção discursiva de Mirna Pinsky e a funcionalidade operatória do título selecionado – Quebra-cabeça.
Note-se, portanto, que a própria estrutura circular do livro favorece o desempenho de uma leitura mais profunda do texto. Inicia-se, assim, uma relação dialógica do leitor com o texto, pela exploração da multiplicidade dos aspectos da obra imbricados na unicidade (coerência interna) do seu todo estrutural. Observe- se, para tanto, a íntima correlação existente entre esta circularidade na construção forma da obra e a circularidade no plano do conteúdo nocional, onde temos:
1. a passagem do tempo marcando o ciclo das estações – primavera/verão/outono/inverno…;
2. o ciclo da vida humana, mediante a seleção das personagens – menina x avô (infância/velhice…);
3. o ciclo da vida em geral: o aparecimento da primeira árvore é ocasionado pelo pássaro que deixa cair uma semente; o aparecimento da segunda árvore já resultou do nascimento de uma romã (ponto central da resolução do quebra-cabeça) que a chuva derrubou da primeira árvore, misturou com a terra e fez brotar;
4. a circularidade na própria estruturação romanesca, pautada pela passagem do tempo e conseqüente repetição dos acontecimento:
“Aí se passou novamente um ano. E novamente deu apenas uma romã.
Mas não vou contar como foi, porque foi igual e acho chato ficar repetindo.”
Esta circularidade temporal vai se associando, na obra, à denúncia do encolhimento físico do avô frente ao desenvolvimento da romãzeira e da neta, como se o primeiro estivesse a ceder seu espaço de vida aos outros seres…
Enfim, esta obra, enfocando, esteticamente, o círculo da vida, deixa passar ao leitor o respeito a todos os seres, indistintamente – homem, planta, pássaro. Exemplo fantástico desta indicialidade, inscrita na construção discursiva, é revelado no seguinte trecho:
“- Vovê, que bom! Que bom – e Luciana deu um beijo no avô e uma dentada na romã. Outro beijo no avô, outra dentada na romã. E mais um beijo na romã, outra dentada no avô. Não, não! Eu me enganei, foi mesmo o contrário: o beijo sempre no avô e a dentada sempre na romã.”
Da repetição (construção circular do segmento transcrito) resulta a obtenção irônica da inversão planejada como instrumento estético de veiculação da equivalência de valores dos seres, independentemente do reino a que pertençam – o avô e a romã. Observe-se que a seleção ideológica da romã (símbolo da fertilidade) expressa a confirmação da vida aí contida em estado latente (a semente).
(…) Quebra-cabeça é, pois, um modelo de obra adequado ao nível de escolarização do leitor infantil e, ao mesmo tempo, trata-se de um material, cuja literariedade se abre à criatividade do leitor, na produção de sentidos legitimáveis tanto para o texto como para a vida.
( As Malhas do Texto: Escola, Literatura, Cinema,
Zizi Trevisan, Clíper Editora, 2000, pp..81 a 85 )