Sobre Carta errante, avó atrapalhada, menina aniversariante
Maria Helena Martins
“Literatura em Minha Casa” sugere levar livro e leitura para onde se mora, podendo compartilhá-los com quem vivemos. Também indica ser “sem idade”, isto é, para quem queira ler. Finalmente, que se trata de Literatura, com L. Parece óbvio, mas nem tão evidente, como se constata lendo Carta errante, avó atrapalhada, menina aniversariante, de Mirna Pinsky, ilustrado por Patrícia Gwinner.
O livro conta uma história com três narrativas que se cruzam: a avó escrevendo uma carta para a netinha, as lembranças que tem enquanto escreve, o quebra-cabeça do carteiro buscando a destinatária da carta. Esse recurso é peculiar, para trançar as narrativas há que uni-las, sem deixar pontas soltas. E a Autora domina esse trançado, inclusive com elementos simples, de modo a uma narrativa se encaixar na outra naturalmente, despertando curiosidade, trazendo um tanto de suspense, surpreendendo o leitor. Para conseguir isso, quem escreve histórias precisa ter um pouco de feiticeiro, de mágico e de artista, com um toque muito pessoal, seu estilo. A combinação harmônica resulta em Literatura, que conquista e mantém o interesse do leitor, ecoa em sua mente e seu coração. Que leitor? Qualquer um: de criança a idoso.
Já nos primeiros parágrafos o texto brinca com expectativas de quem lê. Começa como uma história infantil tradicional (“Era uma avó.”….velhinha… gordinha…), mas logo a descrição dessa avó mostra-a diferente de protótipos ( as dores lhe provocam preguiça; fica rabiscando cartas, mas não gosta de escrever, confunde as letras). Assinalam-se ambivalências, senão contradições, dando contornos curiosos à sua personalidade, a seu modo de escrever a carta e de narrar lembranças. Assim, o texto vai prendendo o leitor.
No meu caso, relaciono o que leio com situações conhecidas. Imagino a trajetória de vida, as múltiplas experiências dessa avó, desde criança. Também penso em como leria essa carta a netinha … Enfim, desse jeito vou lendo. E cada um lê a seu jeito. Não há, pois, receita para fazer uma boa leitura. Até porque ela acontece dependendo da vontade, da necessidade; conforme a experiência de vida, a imaginação e sensibilidade de quem leia. Inclusive, o que hoje parece bom, amanhã pode ser aborrecido, também valendo o contrário. Uma coisa é certa: há leituras que marcam para sempre.
Também não há receita para fazer Literatura. A novela pode ser caracterizada como narrativa curta, com diversidade de espaços e tempos na história, o que a diferencia do conto. Mas tais características são pouco importantes; há vários tipos de novelas, como as escritas e as televisivas. Vale mesmo o modo de elaboração dos elementos que constituem a história, a seqüência de acontecimentos, as relações entre eles e as personagens.
Mesmo sem existir um “modo de fazer”, há expectativas específicas quando se escreve e se lê, tais como a de oferecer o que o outro pode querer, sem deixar de exigir o que o outro pode dar. No desenrolar desse jogo, entram informação, diversão, passatempo, consolo, imaginação, desafio. Jogo esse construído pelas palavras e suas combinações, seus múltiplos significados, aqui ampliados pelas ilustrações do texto, que também mostram como a ilustradora leu a história. Tudo sendo reconstruído por cada leitor.
O jogo de Mirna Pinsky é sutil – muita coisa sugerida, sem ser dita, explora inteligência e sensibilidade. Perspicácia e entendimento do mundo real, envoltos pela atmosfera fantasiosa, resultam num texto convincente. Por mais engraçada que pareça a história, tem fundamento, provocando a apreensão de outras realidades.
Diria que o elemento surpresa – o toque decisivo de prazer inesperado – do livro está na entrada de Pedro Boné. Basta essa observação para provocar curiosidade do leitor.
Aliás, observações assim que se esperam dos mediadores de leitura – educadores, pais, parentes, críticos literários, bibliotecários, vendedores de livros, editores, amigos. Eles constituem um elo muito importante entre textos e leitores. Podem desencadear relações felizes ou infelizes entre um livro e um leitor, dependendo de como os aproximam. Enfim, um Prefácio como este tem essa função.
[Avaliação para um programa de governo, outubro de 2001.]