A leitura na construção da criança

Ainda que pomposo, o título de minha palestra apenas remete a uma idéia consensual, assim expressa pelo cientista Matt Ridley, em O que nos faz humanos: o cérebro humano é construído pela criação.

Para ser mais precisa: Ridley retoma Piaget quando este defende que o que ocorre na formação de um ser humano é uma construção progressiva e cumulativa da mente durante a infância, em resposta à experiência.

Chegamos ao mundo com um equipamento de efetividade limitada. É o que nos vem pelo ambiente e pela educação formal e informal que traça nossa personalidade e descortina caminhos.

Uma sociedade para se firmar e se desenvolver precisa aparelhar as novas gerações. A escola, a família, os meios de comunicação e as formas de lazer são alguns elementos nessa direção.

No passado, a formação das crianças se dava basicamente dentro da família, com a transmissão dos conhecimentos de que cada uma dispunha. Depois vieram o ensino formal (no Brasil introduzido em 1759 por Pombal), os livros, os jornais, o rádio, a televisão, o desenvolvimento dos transportes potencializando as informações e descobertas, e finalmente a internet com toda sua gama de aberturas e possibilidades. O que se descortina, com essa panorâmica, é que os estímulos que a criança em nossa sociedade recebe, escorrega das mãos da família que se não estiver atenta só vai dar conta do prejuízo, quando o bonde descarrilar, mais adiante.

Hoje aqui, diante desta platéia de professores que talvez não possam interferir nos excessos promovidos pela amplidão da oferta, quero percorrer um dos braços dessa rica oferta e defender a necessidade de fortalecê-lo. Não vou desabonar os inúmeros estímulos que cercam a criança, mencionando as limitações de vários deles, mas defender o meu peixe. Meu argumento é o enriquecimento que a Leitura pode propiciar para quem está no início da vida. E como meu compromisso não é acadêmico, tomarei a liberdade de partir de um depoimento.

Começo me transportando para o início da minha convivência com a leitura e a palavra escrita. Quero contar como foi que o livro me fisgou. Minha mãe era professora de primário (como se chamava naquela época o ciclo I do Ensino Fundamental), e me rodeou de livros assim que aprendi a ler.Eu já tinha sido bem motivada para apreciar histórias, pelas incontáveis sessões de contações com que minha avó austríaca me cercava. Minha mãe fizera a ponte entre os recontos cheios de príncipes e princesas que eu ouvia da avó e as histórias extraídas dos volumes que ela punha à minha frente, eu sentada em seu colo, e seguindo seu dedo pelas linhas cheias de grafemas que é, claro, eu não decifrava.

O passo seguinte entra na esfera do lúdico. Lá pelos meus seis aninhos, já exposta há alguns meses ao método fônico do CAMINHO SUAVE, não perdoava uma placa de rua, um outdoor, uma capa de revista nas bancas, charadas que desafiavam minha competência. Decodificar aqueles sinaizinhos era tão divertido como construir casas com bloquinhos ou jogar queimada com os amigos na rua. É claro que não tenho memória de conscientizar, mas pela observação de crianças pequenas, deduzo que o que me movia era uma imensa curiosidade, essa chama intensa que irrompe na cabecinha de cada menino e orienta seus passos e seu crescimento. Dominar um instrumental que até então estivera fora de meu alcance e nas exclusivas mãos dos adultos, e que servia de chave para informações fora do meu âmbito, não só me aproximava dos meus heróis adultos, como me possibilitava revelar segredos.

 E era com essa intensa chama, essa curiosidade inata, que meus pais lidavam, voltando meu lazer para os livros. É verdade que sou do tempo de uma televisão incipiente, que fazia tudo ao vivo com recursos muito primitivos, em branco e preto. Portanto, uma tecnologia que não competia com a riqueza que meu mergulho na leitura propiciava.

 E o que os livros faziam para mim? Por que eles me encantavam e mobilizavam? Encantavam e mobilizavam porque ampliavam meu mundo. Criavam alternativas à chatice do cotidiano, que era como eu, criança, encarava a rotina de muitas OBRIGAÇÕES e poucas DISPERSÕES. Não vou listar aqui as vidas emprestadas que vivi, porque não sobraria tempo para mais nada, mas foi na aventura de viver a vida dos outros, que os livros me fisgaram definitivamente. E quando dei por mim, estava tentando proporcionar a outras pessoas, com meus toscos textos de menina, os deslumbramentos que as histórias me propiciavam. A viciada em livros se pôs a escrever (aos 8 anos, um longo diário,aos 10 uma tentativa de novela)…O percurso foi extenso. Primeiro um livro de poemas em mutilite e auto-financiado com outros três colegas de faculdade, aos 19 anos. Lá pelos 30 anos, os livros infantis, depois também os infantojuvenis. É evidente que foi minha paixão pelos livros, desde a primeira infância, que me tornou escritora.

Depoimentos de escritores, semelhantes ao meu, que descobriram seus rumos de vida pelos livros, vocês certamente já ouviram às dezenas, mas o que vou lembrar aqui é certamente inusitado.

Cito um testemunho de Amyr Klink à revista Bravo. Amyr Klink é nosso mais conhecido aventureiro que a bordo de embarcações, desde a juventude, enfrenta e cruza os mares de todo o globo. Diz ele não ter conhecido o mar morando em Paraty na infância. Descobriu lendo:

“Se não fossem alguns livros, estaria com cracas nas canelas de tanto andar à beira-mar. Não teria ido a lugar nenhum. (…) Foi por meio dos livros que me interessei pelas viagens marítimas. Sem querer, os livros foram desenhando um caminho.”

 Enquanto eu própria devo à literatura as escolhas que tive a sorte e o privilégio de poder fazer, e a literatura configurou a pessoa que sou e os caminhos que percorri, para Amyr Klink, os livros abriram as portas dos mares, criando esse admirável aventureiro que se tornou.

Ao lado de desempenhar a imprescindível tarefa de municiar as crianças com os conhecimentos de ortografia e sintaxe, e ampliar o vocabulário, iniciá-las em novos conceitos para que possam construir o conhecimento, os livros alargam o mundo de cada um. Mario Vargas Llosa, escritor peruano, no ensaio “A literatura e a vida”, que encerra sua coletânea A verdade das mentiras, publicada em 2004 pela Arx/Siciliano escreve: (a afirmação, que não canso de citar, é meio livre):

“A literatura” (…) é alimento de espíritos indóceis (…). Sair para cavalgar junto ao esquálido Rocinante (D. QUIXOTE DE CERVANTES…) percorrer os mares em busca da baleia branca (MOBY DICK DE MELVILLE) (…) beber o arsênico com Emma Bovary (MADAME BOVARY, FLAUBERT) (…) é uma maneira inteligente que inventamos para desagravar-nos das ofensas e imposições dessa vida injusta, que nos obriga a ser sempre os mesmos, quando gostaríamos de ser muitos (…) A literatura somente apazigua momentaneamente essa insatisfação existencial (…) mas nessa suspensão provisional da vida (…) somos outros. Mais intensos, mais ricos, mais completos, mais felizes, mais lúcidos (..)

E para quem lida com crianças, Llosa chama atenção para outro aspecto: a importância fundamental da literatura para ampliar o repertório de palavras, a partir do qual a criança poderá elaborar conceitos, apreender informações, incorporá-las e dessa maneira construir o conhecimento. Dominar uma fala rica é fundamental para se estar preparado para pensar, aprender, dialogar, e mesmo sonhar e fantasiar.

Neil Postman, autor de mais de 20 livros a maior parte sobre mídia e educação, afirma que assistir televisão exige percepção e não concepção, enquanto LER envolve pensar, raciocinar, imaginar e julgar.

Os livros ampliam o nosso mundo. A experiência com a ficção é essencial para nosso amadurecimento existencial e para nosso crescimento pessoal em vários níveis. Ela nos permite a apropriação de conhecimentos, o domínio da linguagem que vai nos possibilitar conceituar nossa percepção de mundo. Quando colocamos em palavras o que percebemos sobre o mundo à nossa volta, estamos definitivamente apreendendo o que nos cerca.

Confesso que quando escrevo para o leitor infantil (e jovem também), todas essas digressões não se fazem presentes. Minha única preocupação é me aproximar do universo dele, assumir sua ótica, e perambular com humor por assuntos que possam interessá-lo. Nem sempre o tema está consagrado nos incontáveis desenhos animados japoneses que atulham a programação dos canais a cabo e abertos. Aliás, tenho uma gravíssima falha cultural porque não consigo me concentrar nesses personagens de muita agitação e pouco tino que protagonizam histórias praticamente sem enredo. O argumento de que “as crianças gostam” não me comove. Se ela é soterrada de entulhos, porque os pais estavam ausentes quando ela ficou sozinha frente à televisão, apenas demonstra que o treinamento foi bem-sucedido.

Ainda que a platéia de hoje seja fundamentalmente constituída de professores de língua inglesa, acredito que o ensino do inglês pode ser tanto mais bem sucedido se se valer de livros de ficção. Sinto-me, portanto, confortável tentando sensibilizá-los nessa direção, voltando a recorrer a Vargas Llosa para encerrar minha fala:

“Uma pessoa que não lê, ou que lê pouco, ou só lê lixo, pode falar muito, porém dirá sempre poucas coisas, porque dispõe de um repertório mínimo e deficiente de vocábulos para se expressar. Não é uma limitação somente verbal; é também, uma limitação intelectual e de horizonte imaginário, uma indigência de pensamentos e de conhecimentos, porque as idéias, os conceitos mediante os quais nos apropriamos da realidade e dos segredos da nossa condição, não existem dissociados das palavras, através das quais a consciência os reconhece e os define”.

[Palestra para professores de inglês da Escola Yazigi, julho de 2009]

 

Os Trilhos e o Trem

O que veio primeiro foi o encantamento pelas palavras de outros. Sem, claro, perceber o que me acontecia, fui sendo transportada para fora da chatice de minhas limitadas rotinas ao embarcar em hipérboles alheias. E o instrumento desse traslado, a palavra, me parecia perfeitamente ao meu alcance. Pois não era com ele que eu me contava no diário, registrando, com a disciplina de meus oito anos, quem era quem (avós, pais, irmão, primos) e que sentimentos me inspiravam? (Foi um deleite recuperar esse diário, há alguns anos, numa dessas reformas de casa que funcionam como tufão, tirando tudo, principalmente papéis amarelados, de seus nichos de eternidade. O diário veio com data completa, o que não aconteceu com minha “primeira novela” a qual, pela caligrafia já mais segura, depositei uns dois ou três anos mais adiante.)

Esse primeiro texto de criação me trouxe lembranças curiosas: as personagens, cenário, objetos e outras figurações eram todos inspirados nos livros que lia. Embora conhecesse Monteiro Lobato, e tivesse adorado seus títulos mais “amenos” como Reinações de Narizinho, meu “patrimônio literário” eram traduções: obras de Charles Dickens, Rudyard Klipling, Mark Twain, entre outros. Naquele texto, então, trafegavam tílburis, lampiões e personagens com nomes de Jane e John. E recordo a felicidade de perceber que, sem esforço, pelas folhas do bloco sem pauta, as palavras desenhadas a lápis davam vida a acontecidos e diálogos, do jeitinho (segundo minha inocente apreciação) que estava nos livros. Essa auto-avaliação foi pra lá de reconfortante, pois a rotina de meus dez pra onze anos era cheia de desafios angustiantes: tirar notas que garantissem a estrelinha no boletim mensal, tocar sem tropeços pecinhas ao piano para exibição ao final do ano, dominar bem o inglês das aulas da União Cultural Brasil-Estados Unidos e conseguir equilíbrio adequado nas pontas dos pés das aulas de balé. Fora o lance do convívio social, em que sempre surgia uma líder disfarçadamente sádica, exigindo maneios de atitudes e alma. É mole? Pois no frigir dos ovos, era moleza sim, porque a palavra escrita pelos autores (em que eu mergulhava) e por mim (nos arremedos de histórias que fui produzindo) eram meus trilhos e meu trem, a maneira lúdica e ao meu alcance (filha que sou de professora primária competente) de garantir aprovação.

Tinha conquistado um espaço de segurança. Cavalgar a palavra com destreza maior do que a média de meus colegas trouxe benefícios. Ainda mais depois que me elegeram ghost-writer das dissertações que o prof. Álvaro passava toda segunda-feira. Embora por vezes ele sacasse “ecos do estilo da Mirna” em composições de minhas colegas, meu crédito ficou garantido.
E minha “notoriedade” confirmou-se quando passei a me arriscar na poesia. As frases melodiosas vinham com facilidade, e combinar o tom e o som das palavras com imagens, produzindo fortes metáforas, por vezes fugia ao meu controle. A torrente escorrendo pelo papel ganhava vida, quase uma coisa autônoma entre o som e o sentido final, sem acionar trâmites racionais intermediários. Mas que soava bonito, soava…

Eram versos curtos, sem rima, poucas estrofes, com a palavra e as imagens soltas configuradas em anseios adolescentes: amor, falta de, primeiros embates com o vazio, incomunicabilidades da juventude, e, claro, indignações contra injustiças sociais. Este anseio, mais que os outros, fazia muito sucesso nos saraus poéticos que vicejavam nos anos 1960 por toda São Paulo. Os trilhos podiam estar um pouco desnorteados, mas o trem ia se abarrotando de ousadias.

Na infância, a família fornece a maioria dos parâmetros. Na adolescência é a comunidade que faz esse papel. Ganhei prêmios de poesia e agora meu oásis se tornava também meu “bálsamo, meu sentido”, minha incipiente construção de identidade. Claro que nada disso era muito consciente, porque os desafios das circunstâncias consumiam toda minha energia.

Ler e escrever renovavam essas energias, eram fontes de prazer e espaços pessoais secretos, individualizados, que traziam alento e equilíbrio. [Ler era insumo, escrever, era produto.] E foi nas asas dessa dupla experiência que minha sensibilidade deslanchou. Com as leituras de romances, aprendi a ver o mundo de fora; com os exercícios da escrita, fui tateando o mundo de dentro.

Depois, o domínio da palavra escrita invadiu outras dimensões. Fui jornalista durante uns dez anos. E desde 1980, estou engajada na área editorial , e de formas diversas (traduzindo e copidescando) lido com o texto de outros.

Quanto à minha produção, no final dos anos 1970 voltou-se para a criança e mais adiante também para o jovem, embora de vez em quando tenha recaídas na direção da poesia. A língua, nessa etapa, continua funcionando como elemento de apreensão e comunicação. Na literatura para o público jovem fiz, intuitivamente, a opção de assumir o universo do leitor, narrando na ótica dele. Uso e abuso do narrador indireto livre, que consegue acolher o que se passa na mente e no coração do personagem, sem ficar constrito às amarras de uma consciência mais leve. Nesse jogo, é possível construir o inusitado que autoriza a leitura divertida, tanto por parte do leitor jovem quanto do adulto. Ainda que a reação do leitor jovem venha a ser apenas um ligeiro sorriso, acredito que o “se ver” de uma forma menos tradicional e padronizada promove um crescimento interior (apreensão de novos conceitos, auto-percepções) e uma abertura para o universo da escrita.

Em “ A verdade das mentiras”* Mario Vargas Llosa escreve que a literatura,

“(…) é alimento de espíritos indóceis (…). Sair para cavalgar junto ao esquálido Rocinante, percorrer os mares em busca da baleia branca, beber o arsênico com Ema Bovary é uma maneira inteligente que inventamos para desagravar-nos das ofensas e imposições dessa vida injusta, que nos obriga a ser sempre os mesmos, quando gostaríamos de ser muitos (…) A literatura somente apazigua momentaneamente essa insatisfação existencial (…) mas nessa suspensão provisional da vida (…) somos outros. Mais intensos, mais ricos, mais completos, mais felizes, mais lúcidos (…)

O que era crescimento e identidade passou a ser instrumento de compromisso. Hoje os trilhos encontram-se estáveis em seus dormentes e o trem mais carregado. Não consigo viver em paz diante do exército crescente de jovens com acesso vedado aos livros, que vejo à minha volta. Sei que isso ocorre não porque outros lazeres roubem a atenção deles, mas porque a despeito dos vários anos em bancos escolares, não dominam o letramento.

Continuo escrevendo histórias para crianças e jovens – tenho 48 livros publicados – mas quero alcançar uma parcela maior desses 85% de alunos do ensino fundamental, meus leitores em potencial, que freqüentam escolas públicas. A minha viagem sofreu correção de rota. Se no início me bastava endossar Amos Oz (na FLIP) – “a língua é para mim constituinte, uma atitude, um instrumento, um estado mental” hoje tenho outras pretensões. Elejo , como Llosa, a língua promovida pela literatura, como fonte de “ampliação do repertório de palavras a partir do qual é possível elaborar conceitos, apreender informações, incorporá-las e dessa maneira construir o conhecimento”. Considero que o domínio de uma fala rica seja “fundamental para se estar preparado para pensar, aprender, dialogar, e mesmo sonhar e fantasiar”. Quero estender isso a muito mais crianças.

A consciência do que a língua fez por mim continua imprimindo novos rumos aos trilhos. Tive de reconfigurar o trem para conseguir interferir concretamente ao redor.
(Depoimento publicado no livro Literatura e outras linguagens, de Beth Brait, ed. Contexto, 2010.)

Conversa sobre criação

“Tudo que invento dos outros, é de mim que falo” a afirmação é de Manoel de Barros, poeta cuiabano, e eu a subscrevo. Pois é assim, mergulhando no que sei dos outros e, portanto, “faz parte de mim”, que construo os vários personagens de um conto ou novela. Espalho por eles essas “descobertas” e procuro situá-los, inicialmente de forma bastante precária, dentro da história.

Não tenho em mente uma história detalhada e completa, quando me ponho a escrever. Na verdade, é algo aparentado com uma intuição que me avisou: “ali existe uma história curiosa, que pode ser bem-humorada e será divertido desenvolvê-la”. Ela dorme e acorda comigo algumas vezes, e vai me encantando cada vez mais. Há dois pré-requisitos para esse primeiríssimo momento em que ainda estou de namoro com a história: que ela possibilite ser diferente de tudo que escrevi em termos de solução narrativa, e tenha leveza, humor, um aceno poético.

Como construir esse tom (leve, bem-humorado, poético) num texto de adulto dirigido a uma “platéia” de crianças? Em que clave situá-lo? Adoto a estratégia de sintonizar o mundo da criança. Não propriamente recuperando a minha infância, aliás muito feliz, pois dela só lembro da alegria e da liberdade. Para essa sintonia, quanto mais proximidade com crianças , melhor. Pra mim, fluiu muito bem quando tinha filhos pequenos, depois sobrinhos pequenos e nos últimos dez anos, uma variedade de netos pequenos. Nos intervalos, convivi com os alunos da rede pública onde desenvolvi um projeto voluntário pessoal – mas aí a proximidade foi um pouco mais remota…

Sintonizada com a criança – imagino o meu interlocutor/leitor em linhas gerais, idade, grau de escolaridade, universo vocabular, possíveis vivências – começo a esboçar os contornos da história: os personagens que darão andamento aos acontecimentos, a linguagem que é o rio pelo qual os personagens navegarão, a palavra, o tom, os enfeites…Faço isso – e esse é o pulo do gato – determinando a natureza do narrador. Esse “alguém” que conte a história que pressenti ali, da maneira mais competente e usando a linguagem da forma mais criativa e ao mesmo tempo adequada (ao leitor e ao narrado). (Utilizo com freqüência um personagem criança, narrando a história em primeira pessoa ou um narrador fora da história, utilizando o indireto livre). Sei que há inúmeras maneiras de contar uma história e, portanto, de determinar o narrador. É preciso que na triangulação – história, narrador, eu – todos se sintam confortáveis para deslanchar bem.

Não é raro eu encrencar com uma história e sentir “preguiça” e “desânimo” de retomá-la. No meu computador há vários exemplos disso. Foi quando não encontrei o jeito certo de contar a história, ela ficou chata/óbvia/desagradável/desinteressante/repetição de algo já escrito, etc.

Outras vezes eu me aprumo e retomo a história do início, trocando o narrador. Aconteceu isso, por exemplo, com Nó na garganta, um de meus livros mais bem-sucedidos, com mais de 60 edições pela Editora Atual.

Esboçada a natureza do narrador, pelos olhos dele será definido o universo, digamos, existencial, com todas as suas possibilidades, que por fim traçará os contornos do universo vocabular.

Reforço a importância e “responsabilidade” da palavra, recorrendo a um dos autores brasileiros mais inspiradores.

Guimarães Rosa, em entrevista a um crítico alemão [i], disse:

“Sou precisamente um escritor que cultiva a ideia antiga, mas sempre moderna, de que o som e o sentido de uma palavra pertencem um ao outro. Vão juntos. A música da língua deve expressar o que a lógica da língua obriga a crer (…) Cada autor deve criar o seu léxico (…) Estes jovens tolos que declaram abertamente que não se trata mais da língua, que apenas o conteúdo tem valor, são pobres coitados dignos de pena. O melhor dos conteúdos de nada vale se a língua não lhe faz justiça”.

Essa declaração é uma bússola.

Nas histórias para leitores de 7 a 10 anos, um pouco mais um pouco menos, há algumas limitações que convém observar: frases curtas, não abusar das subordinadas, se possível introduzir diálogos, e ser muito clara na troca de cenário (P. ex.: Carta errante…tem dois focos. Um na avó, outro no carteiro).

Em histórias juvenis tenho resolvido a necessidade de “ampliar o campo de visão”, recorrendo a várias vozes narrativas. Por exemplo, em A grande viagem, história publicada pela Mercuryo Jovem, há um narrador em terceira (indireto livre) que “organiza” a história acompanhando o garoto principal pelos olhos da terapeuta e se reveza com a visão do próprio garoto (Marcelo, em primeira pessoa) e a visão de sua amiga Mercedes (=geralmente por meio de e-mails trocados com uma prima mais amadurecida).

Em Tão longe, tão perto, publicado pela Editora FTD, há troca de e-mails da protagonista adolescente, narração em terceira com indireto livre, alternando as vozes do pai e da mãe.

O recurso de vários narradores permite uma dinâmica bem apropriada para textos juvenis, que exigem sempre agilidade.

Outra preocupação presente, já mencionada, é fugir do óbvio e das soluções narrativas que já percorri. Evitar me repetir em termos de construção de personagens e conteúdo, buscar sempre novas formas de organizar o texto, descobrir novas linguagens: essas são aflições sempre presentes, quando escrevo.

Vejam isso formulado por Guimarães Rosa:[ii]

“…em meus livros, eu faço ou procuro fazer isso permanentemente, constantemente, com o português: chocar, ‘estranhar’ o leitor, não deixar que ele repouse na bengala dos lugares-comuns das expressões domesticadas e acostumadas; obrigá-lo a sentir a frase meio exótica, uma ‘novidade’ nas palavras, na sintaxe. Pode parecer crazy de minha parte, mas quero que o leitor tenha de enfrentar um pouco o texto, como a um animal bravio e vivo. O que eu gostaria era de falar tanto ao inconsciente quanto à mente do leitor.”

Não é simples decidir sobre o tom e o tempero desse caminho. Clarice diz assim:[iii]

“Não é facil escrever. É duro como quebrar rochas. Mas voam faíscas e lascas como aços espelhados”.

O que sei é que aprendi a escrever lendo Monteiro Lobato, Francisco Marins, Thales de Andrade (Saudades), Maria José Dupré (que assinava “Senhora Leandro Dupré) na infância; Eça de Queiroz & Machado de Assis a partir da adolescência por indicação escolar. E esses livros passaram a forjar em mim uma espécie de dicionário interior, com ricas soluções gramaticais, que foram se superpondo e se acrescentando ao longo dos anos. Escrever é técnica e operacionalização da percepção. O que também sei é que ao introjetar e acomodar nos meus circuitos cerebrais as palavras, via palavra escrita, eu “domesticava” a palavra e ela passava a me servir para me comunicar. Ao mesmo tempo, eu obtinha a chave para um prazer imenso. Passava a ter acesso pleno e extremamente gratificante a experiências vicárias enriquecedoras, que me faziam avançar e amadurecer. Um encantador círculo vicioso.

Desta forma, também livros traduzidos como As aventuras de Tom Sawyer, de Mark Twain, na infância, e O apanhador no campo de centeio, de J. P. Salinger, na juventude, ajudaram a forjar a minha sensibilidade para o outro e para as instâncias do mundo. Foram incontáveis, nesse terreno, os livros/autores preciosos que tenho a registrar. Lembro aqui meia dúzia deles: O quarteto de Alexandria, de Lawrence Durrell ; Conversas na Catedral e Tia Júlia e o escrevinhador, de Mario Vargas Llosa ; A caixa preta, de Amos Oz ; Os papéis de Aspern, de Henry James ; O bom soldado, de Ford Madox Ford; As brasas, de Sandor Márai.

Existe o dicionário das palavras e dos arranjos gramaticais; existe o dicionário dos caminhos e descaminhos do comportamento humano. Minha vida foi sempre entrelaçada com as experiências de leitora. Ao me expressar por escrito, em histórias para crianças e adolescentes (e contos e poemas para adultos) busco percorrer o mapa de Clarice, nutrindo os textos de aços espelhados, e ouso acrescentar: com as contas de um caleidoscópio perseguindo a melodia das palavras. As palavras que nutrem, dão sentido ao entorno, aproximam o outro e nos organizam. As palavras que nos dão sentido. Escrever é uma volúpia, tanto maior quanto maior for a entrega.

*Entrevista a Gunter Lorenz, citada na coletânea Guimarães Rosa, organizada por Eduardo F. Coutinho, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira:Brasília, INL, 1983.

[ii] Carta a Harriet de Onis, tradutora para o inglês de Grande Sertão:Veredas, citado na tese de doutorado de Edna Nascimento Metalinguagem Natural na obra de Guimarães Rosa, S.Paulo, Editora da USP, 1986.

[iii]A hora da estrela, p. 24

(Palestra apresentada em encontro com psicanalistas, out.2011)