O caminho das águas

Sobre Nó na garganta
Edith Piza

“Tânia é uma menina negra (…) que vai aos poucos construindo sua identidade através do reconhecimento de que é sua condição de diferente, de negra, que a torna objeto de discriminação.

         De família pobre (mãe e pai trabalham como empregados domésticos em uma casa de praia no litoral de São Paulo), Tânia começa a perceber sua diferença dentro da própria família, no empenho com que a mãe tenta alisar-lhe os cabelos, ou na postura amarga da mãe e subserviente do pai, na presença de pessoas brancas. Mais tarde, encontrando uma menina branca, esforça-se por ganhar-lhe a amizade, invejando sua beleza e sua riqueza. A proximidade com a menina branca provoca em Tânia o desejo de não ser negra, de assemelhar-se aos brancos e compartilhar os seus “dons”. Entretanto, Tânia logo compreende que isso é impossível, porque sua condição de negra é entendida pela menina branca como inferioridade e a transforma em alguém que deve ser explorada. Seus sentimentos de amizade são interpretados como submissão”. (…)

         “Numa quermesse da vila, Tânia se confronta com o racismo. Desejando ardentemente ganhar uma boneca no leilão, presencia o esforço do pai e de um amigo para conseguirem a boneca, mas a presença do poder econômico branco se sobrepõe e Tânia vê-se outra vez impedida de realizar um desejo”. (…) Em casa, chorando de dor e de revolta, Tânia observa-se e reconhece-se: “eu sou bonita”, repete diante do espelho, sugerindo (…) um reconhecimento da própria identidade, capaz de a colocar em harmonia com sua realidade e de construir uma imagem diferente daquela que a acompanhava até aquele momento.

         O que ressalta Tânia de outras personagens femininas negras (…) é que ela não requer a mediação do branco para construir sua identidade. Ao contrário, o contato com o branco desencadeia uma contradição que deve ser superada no interior da personagem”. (…)

         “Tânia congrega os aspectos combativos e críticos que Mirna procura conferir a uma literatura esteticamente inovadora. A comunicação entre texto e leitor é objeto da preocupação da autora que, enquanto escreve para crianças e jovens, busca entender o universo infantil e juvenil, compreender seus mecanismos e entrar em sintonia com eles: quer manter uma sensibilidade a respeito dessa relação. Do exercício dessa compreensão surge uma linguagem e uma estrutura narrativa que procuram falar coerentemente sobre a realidade que o texto propõe, mais do que encontrar um estilo realista de narrativa. Para Mirna, as relações entre adulto e criança são relações de mútuo aprendizado, que permitem ao adulto que escreve para crianças e jovens apreender não apenas uma perspectiva do mundo infantil e juvenil visto pelo adulto, mas também compreender em que perspectiva a criança e o jovem veem o mundo adulto. Assim, para ela, escrever para jovens é um exercício de troca e modo de construção literária. A perspectiva intergeracional que a orienta tem lhe valido, principalmente na literatura escrita para crianças, uma sequência de sucessos de crítica e público e a beleza sempre renovada de seus textos.

         Essa postura crítica e autocrítica das relações entre adultos e crianças nasceu também de sua proximidade com uma geração de mulheres que questiona outras formas de poder. (…) Nesta medida, Tânia viabiliza alguns laços entre a necessidade de se valorizar, enquanto alguém diferente, pertencente a outra raça, tanto quanto a outro sexo. Jogos de espelho, duplo de identidade em transformação. Tânia, nascendo no momento do sucesso, prepara terreno para a chegada de Márcia [do livro Iniciação] e o discurso sobre a sexualidade adolescente”.

[O caminho das águas – Tese de doutorado
defendida na PUC; publicada pela Editora
da Unesp em 1998.]